Educação: bem imaterial incomensurável – o Fundeb perenizado

“Der Mensch kann nur Mensch werden durch Erziehung” – “O ser humano só pode tornar-se humano pela educação” – Immanuel Kant (Sobre a pedagogia, 1803).

 Por Estevão de Rezende Martins* – Dentre as muitas mazelas que os brasileiros combatem, com admirável perseverança e coragem, a educação se destaca. Como se destacam a saúde e o emprego.

A educação é um bem inestimável, duradouro, que produz os melhores dividendos: equilíbrio, moralidade, cultura, respeito, tolerância, solidariedade, compreensão, entendimento, competência, lhaneza, honestidade, confiança, e assim por diante. Educação é um processo formativo amplo, em que ensino, instrução, aprendizagem e habilidade técnica são etapas.

Com a promulgação da Emenda Constitucional 108/2020, em 26 de agosto, o Fundeb, que se encerraria em 31 de dezembro próximo, tornou-se permanente.

Em 1988, a Constituição estabeleceu: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (art. 205).

A necessidade de ancorar, em diversos artigos da parte permanente da Constituição federal, o financiamento inescusável da educação (do ensino obrigatório público) demonstra uma vez mais o grau de volatilidade política dos governos no país. Quanto a todos os níveis – municipal, distrital, estadual ou federal – reina desconfiança com relação à seriedade dos gestores ao lidar com a educação dos cidadãos.

Tradicional cacoete político-jurídico brasileiro, sobejamente evidenciado na elaboração da Constituição: a arraigada crença de somente se o comando estiver escrito na Carta Magna, com todos os efes e erres, é que se consegue assegurar financiamento e cumprimento das obrigações estatais. Quando se consegue. A educação como dever do Estado consta desde 1934 nos textos constitucionais.

Ou seja: fora da Constituição não há salvação. E o que estiver nela tem mais chances de ser cumprido.

Foi essa a lógica da criação do Fundef (ensino fundamental) em 1996. Foi a primeira iniciativa. Renovado, expandido e rebatizado em 2006, com o nome de Fundeb (educação básica), o fundo impõe e baliza o carreamento de recursos dos Estados e Municípios, além de complemento por parte da União, para “a manutenção e o desenvolvimento do ensino na educação básica e a remuneração condigna de seus profissionais” (art. 212-A).

Em 2020 o ‘novo’ Fundeb traz quatro ganhos notáveis com respeito a seus predecessores:

– tornou-se perene;

– teve aumento no volume de recursos na cesta que o compõe;

– ganhou uma dimensão mais redistributiva;

– incorporouum bônus por desempenho.

A perenização do fundo indica duas coisas: uma, que a transitoriedade anterior não afastou a desconfiança com respeito ao cumprimento direto ou indireto das regras quanto ao ensino público, por parte de prefeitos e governadores. Outra, a convicção de que, sem a imposição constitucional, a educação acabaria por ser mantida no campo das “primas pobres” das políticas públicas.

O Congresso Nacional, com o concurso notável da competência técnica e profissional de suas consultorias legislativas e de orçamento, prestou, com a nova versão do Fundeb, um extraordinário serviço de qualidade social e jurídica aos brasileiros.

Talvez por isso o art. 206 da CF tenha ganho um novo inciso, que pereniza a educação como processo permanente da vida cidadã: “garantia do direito à educação e à aprendizagem ao longo da vida”. A perenização não é, pois, apenas do fluxo financeiro.

A ampliação da complementação da União no novo Fundeb, além de manter o apoio aos Estados e Municípios que já a recebem na atual configuração do Fundo, adota critérios de alocação de recursos federais que acentuam seu caráter redistributivo, passando a beneficiar um maior número de redes de ensino municipais, em todo o território nacional. Além disso, inclui critérios de qualidade e desempenho (melhoria nos indicadores) e oferece recompensa com adicionais de valor. Espera-se com isso que os gestores na ponta do sistema zelem pelo incremento qualitativo do sistema escolar e pelo aproveitamento crescente dos educandos. Há uma fase de transição financeira no aporte de recursos da União ao Fundeb, que se estende de 2021 até 2026: passará de 12% no primeiro ano a 23% no sexto ano.

Parte do aporte financeiro federal ao fundo depende de avaliação de desempenho dos sistemas estadual e municipal, e de sua posição relativa no quadro de indicadores educacionais do país. É boa coisa, e bem-vinda. Gastar dinheiro é fácil.  Merecê-lo exige esforço, engajamento e responsabilidade.

Do ponto de vista financeiro, ao menos, pode-se dizer que há luz no fim do túnel da educação pública brasileira. Pode-se ainda encontrar queixas de que o país iria de engessamento a engessamento dos recursos públicos ou de que a autonomia de gestão seria comprometida com as camisas de força constitucionais. Quem sabe. Mas que se tenha estimado necessário aprovar a famosa emenda João Calmon em 1983 é prova da carência secular do sistema educacional público. O mecanismo legal impositivo é, ao fim e ao cabo, resultado das omissões – dolosas ou culposas – do passado.

Oxalá dentro de seis anos possamos constatar que caminhamos bem e rapidamente, para mais e para melhor, na escola e na cidadania.

* Estevão de Rezende Martins, historiador, é professor emérito da Universidade de Brasília (UnB).

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