O imbróglio em torno do julgamento da tragédia de Mariana

Por Luciana Ricci Salomoni* – Em 5 de novembro de 2015, em Mariana (MG), ocorreu o rompimento da barragem de Fundão, o maior crime socioambiental do Brasil e um dos maiores desastres da mineração global. Aproximadamente 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos foram despejados na bacia do Rio Doce e no Oceano Atlântico, afetando mais de 650 km de território, resultando em 19 mortes, extinção de comunidades, deslocamentos forçados e a contaminação severa do Rio Doce, considerado sagrado pelos Krenak, com danos que persistem até hoje.

A barragem, construída e operada pela Samarco S.A., controlada pela Vale S.A. e BHP Billiton Brasil Ltda., foi objeto de diversas investigações que resultaram em denúncias contra essas empresas e funcionários. Até o momento, nenhum réu foi condenado criminalmente, e 15 foram absolvidos. O prazo de prescrição dos crimes ambientais é 2024.

Em 2016, foi criada a Fundação Renova para gerenciar a reparação das vítimas e o meio ambiente, mas sua atuação gerou críticas, como a exigência de comprovação de residência para indenizações e a falta de participação comunitária nos processos. A entidade foi notificada pelo Ministério Público Federal por violações de direitos humanos em 2018.

Atualmente, a Advocacia-Geral da União (AGU), o Ministério Público Federal (MPF), Defensorias Públicas, Tribunais de Justiça de Minas Gerais e Espírito Santo, e a Fundação Renova negociam a repactuação dos 42 programas do TTAC Governança, em sigilo. A repactuação foi prevista no TAC-GOV de 2018, e o Eixo 13, criado pela 12ª Vara Federal, supervisiona a avaliação independente das ações da Renova, a pedido da AGU.

O caso transcende fronteiras nacionais, com as vítimas buscando reparação no exterior. Em 27 de julho de 2021, o Tribunal Inglês de Apelação recebeu uma ação coletiva movida por mais de 600.000 vítimas no Reino Unido – entre os quais 46 governos locais e cerca de 2 mil empresas, alegando a insuficiência da justiça brasileira e a competência do Poder Judiciário inglês, por conta da transnacional anglo-australiana BHP.

Essa ação é a maior ação coletiva da história inglesa, a maior ação coletiva ambiental do mundo, a primeira dessa natureza e magnitude; um precedente judicial de responsabilização de multinacionais pelos crimes de suas subsidiárias, que começa a ser analisado pela Corte Inglesa hoje (21.10), e pode durar até 12 semanas. Os requerentes pleiteiam 47 bilhões de dólares em indenização, o correspondente a aproximadamente 267 bilhões de reais.

É a primeira vez que a legislação ambiental brasileira está sendo utilizada no Reino Unido, por se tratar de um litígio transnacional, envolvendo grandes corporações com operações em ambos os países, eis que as ações e omissões criminosas que resultaram em danos ambientais ocorreram no Brasil.

A BHP, a maior mineradora do mundo em valor de mercado, contesta sua responsabilidade. A empresa afirma que a ação judicial em Londres duplica processos legais e programas de reparação e reparo no Brasil, destacando que quase 8 bilhões de dólares já foram pagos aos afetados pelo desastre através da Fundação Renova, que foi estabelecida em 2016.

A questão é sensível. Há preocupações sobre a interferência na soberania brasileira e os honorários de êxito cobrados por escritórios de advocacia internacionais. De fato, é possível traçar um padrão colonial que se reflete tanto na ocorrência do crime, quanto na sua falta de compensação, irradiando sobre o eixo eurocêntrico que funda e estrutura o Direito brasileiro, e que desloca a jurisdição para o Reino Unido.

Em junho de 2024, o Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM) apresentou a ADPF 1178 no STF, alegando que a ação no exterior fere o princípio da soberania nacional, já que envolve municípios brasileiros. A ADPF é vista como uma tentativa de empresas, especialmente a BHP, de barrar a ação estrangeira. Em resposta, a Corte Inglesa determinou que a BHP não financie a ADPF nem outras ações contra as vítimas, sob pena de prisão, multa e apreensão de bens.

Em 14 de outubro de 2024, o Ministro Flávio Dino, relator da ADPF 1178, concedeu liminar proibindo que municípios litigantes no exterior contratem honorários de êxito sem análise prévia da legalidade pela Justiça brasileira, pois o Tribunal de Contas da União já declarou tais cláusulas ilegais em contratos com a administração pública.

O desfecho está próximo, ainda assim não há o que comemorar. Espera-se que o acordo de repactuação no Brasil seja finalizado em outubro de 2024, o que enfraqueceria a ação estrangeira, já que a falta de compensação no Brasil sustenta a legitimidade da ação no Reino Unido. A liminar do Ministro Flávio Dino será analisada pelo STF também neste mês de outubro.

*Luciana Ricci Salomoni: atua na advocacia cível-empresarial e ambiental. Mestra em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Membro da rede Latin American Climate Lawyers Initiative for Mobilizing Action (LACLIMA)

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