O que mais chamou a atenção na lei chamada de pacote anticrime, sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro, é a criação do juiz das garantias — usado em outros países, na instrução, para garantir o distanciamento na hora de julgar. A iniciativa é separar o juiz que se envolve na investigação do que vai, efetivamente, aferir a existência ou qualidade da prova e da acusação.
Trata-se de uma nova divisão de trabalhos em um processo. Um juiz toma as medidas necessárias para a investigação criminal. Depois, outro magistrado recebe e a denúncia e, se for o caso, dá sentença.
A medida desagrada o ministro da Justiça, Sergio Moro. Este, quando juiz, destacou-se na operação “lava jato” por atuar em todas as fases do processo. A advocacia celebra de forma quase unânime, enquanto a magistratura não parece contente.
O lado da magistratura –
Do lado dos juízes, a recepção parece não ser tão calorosa. O presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), Fernando Mendes,ressalta que a entidade era contrária à medida, mas que o importante é agora regulamentar.
“Em relação ao juiz de garantias, tema mais polêmico do pacote, embora a posição da Ajufe fosse contrária ao instituto, uma vez incorporado ao Processo Penal pela Lei 13.964/19, o importante agora é a sua regulamentação. Ela terá de ser uniforme. Não faz sentido ter juiz de garantias apenas nas Capitais e para os crimes de colarinho branco. Se o instituto é importante, tem se ser aplicado para todos, seja nos processos da lava jato, seja nos processos de crimes comuns, que são milhares e que tramitam no interior do país e que precisam ter as mesmas garantias. A Justiça Federal terá de redesenhar a estrutura de sua competência penal para tornar isso possível e Ajufe vai colaborar nessa agenda”, diz Mendes.
A Associação dos Magistrados do Brasil (AMB)
divulgou nota se posicionando contra o juiz de garantia. A entidade acredita que a medida irá criar custos desnecessários.
“A implementação do instituto “juiz de garantias” depende da criação e provimento de mais cargos na Magistratura, o que não pode ser feito em exíguos trinta dias, prazo da entrada em vigor da lei. A instituição do “juiz de garantias” demanda o provimento de, ao menos, mais um cargo de magistrado para cada comarca — isso pressupondo que um único magistrado seria suficiente para conduzir todas as investigações criminais afetas à competência daquela unidade judiciária, o que impacta de forma muito negativa todos os tribunais do País, estaduais e federais”, diz a AMB.
O lado dos advogados – Para o criminalista Pierpaolo Bottini, o instituto preserva a autonomia e independência do juiz. “Faz com que o juiz, que determina as medidas cautelares no momento da investigação, não seja o mesmo que julga. Isso é fundamental para consagrar o sistema processual acusatório em que o juiz é o mesmo destinatário das provas produzidas ou requeridas pelas partes”.
O criminalista Davi Tangerinovê neste quesito um dos únicos pontos positivos do que chama de “pacote populista” proposto por Moro. “A construção da narrativa da investigação, quando não unilateral, é preponderantemente da acusação. E o juiz se deixa perpassar por essa narrativa. É uma questão humana, não de má fé. O juízo de garantia nasce da singela constatação de que julgadores são humanos e que há arranjos mais eficientes para mitigar a inafastável condição humana da falibilidade”, considera.
Faz coro a Tangerino a advogada Daniella Meggiolaro. “Um dos pouquíssimos pontos positivos do pacote anti-crime foi acertadamente mantido pelo presidente. Uma grata surpresa, nesses tempos de flerte com o autoritarismo e retrocessos em termos de política criminal.”
Ministério Público – Não foram só advogados que expressaram contentamento com a medida. O procurador de Justiça Marco Antonio Ferreira Lima afirma que o juiz de garantias é essencial. Mas também celebrou a consolidação da audiência de custódia com a lei.
“A audiência de custódia é garantia do preso e da sociedade. Acaba com as afirmações muitas vezes infundadas de torturas ou de ilegalidade nas prisões. É também uma forma de se dar maior segurança ao devido processo legal. A identificação criminal há muito deveria já estar acompanhada da coleta dos dados genéticos. Outra questão importante é o acordo da não persecução penal. O Ministério Público assume as investigações e até o arquivamento do inquérito o que assegura a imparcialidade do juiz. E também na semelhança do “plain bargain” alivia o estado de questões menores que devem ser resolvida sem processo mas por meio de acordos especialmente nas questões patrimoniais e crimes não violentos”, diz Lima.
E para o promotor de Justiça de Minas Gerais André Luiz Alves de Melo o projeto pecou por não atuar em temas do cotidiano como simplificar as intimações, ainda muito arcaicas. “Também não simplificou as audiências de instrução e que provocam prescrição em quase 70% dos processos . Uma novidade pouco comentada é a nova redação do artigo 28 do CPP. Mas, permaneceu a redação do Artigo 24 na qual se baseia o mito da obrigatoriedade da ação penal, embora fale em atribuição e não em obrigação”.
(De Fernando Martines, Fernanda Valente e Sérgio Rodas, da revista Consultor Jurídico).
Conclusão : se foi ruim pro moro, foi bom pro Brasil.