“A consciência é o melhor livro de moral, e o que menos se consulta.” – Blaise Pascal 1623-1662), Pensées.
“Duas coisas me enchem a alma de crescente admiração e respeito, quanto mais intensa e frequentemente o pensamento delas se ocupa: o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim.” – Immanuel Kant (1724-1804), Crítica da Razão Prática.
Por Estevão de Rezende Martins * – Não bastasse o sofrimento inominável da pandemia que se abateu sobre a população, os alienados do ‘andar de cima’ continuam, como se nada fosse.
A cada notícia vergonhosa pensamos, iludidos, que talvez não se teria como cair mais baixo. Vã esperança: desaba por sobre nós a notícia relativa a um senador da República. Sua Insolência esconde na roupa de baixo somas que a esmagadora maioria do povo brasileiro não consegue sequer imaginar após anos de salário mínimo. E lá vamos nós, enfiados mais profundamente no lodaçal da enxovia em que chafurdam mais e mais “políticos” em nosso martirizado país. Nem original é, pois um assessor de deputado estadual do Ceará fora flagrado em 2005 com US$ 100.000 na cueca (haja cueca!) e mais R$ 200.000 numa maleta. Origem? Desconhecida.
Sem fazer uma viagem longa ao passado, a cínica imoralidade na vida política começa a ter exemplos assustadores com o episódio dos “anões do orçamento”, cuja investigação iniciada em 1993 levantou uma ponta do véu de hipocrisia e cumplicidade que reúne tantos mandatários. O véu continuou a ser levantado com o ‘mensalão’, ‘petrolão’, ‘rachadinhas’, ‘cheques voadores’ e ‘empréstimos’ esdrúxulos …. Pelo jeito a corrupção é como um camaleão (sem querer ofendê-lo!), mimetiza e continua a grassar.
A cada dia nova agonia! A falação de que enfim se há de consertar o pepino que nasceu torto e erradicar a corrupção, no mais das vezes não passa de dissimulação, conversa para lá de fiada, que é apregoada por vendilhões a cada nova eleição!
A hidigez moral tornou-se rara mercadoria, quando deveria ser componente essencial da consciência humana. A atitude de retidão e desprendimento no exercício de mandato político acaba por ser um bem escasso, uma rara pérola, que orna o caráter apenas de uma minoria.
Em todo o espectro político, da direita à esquerda, passando pela ameba indefinível do que se convencionou chamar de “centrão”, medra a erva daninha da venalidade, do desprezo pela causa pública, do desinteresse em construir soluções duráveis para problemas enraizados duradouros. Todo o blá-blá-blá que proclama: “agora vai!”, “vamos aniquilar a corrupção”, “vamos enfim implantar um sistema distributivo justo”, etc., etc., etc., rapidamente é deixado de lado, com o (eterno?) retorno do compadrio, do balcão político de negócios orçamentários, de toma-lá-dá-cá na “liberação das emendas”, e assim por diante. Quanto mais (aparentemente) muda, mais fica a mesma coisa.
Obviamente, nem tudo é treva ou maldade. Ainda bem. Sempre há exceções, gente extraordinária, que se exaure em defesa do interesse público e que se esfalfa a combater o crime a leniência, a indiferença, o menoscabo. Infelizmente, essas andorinhas não são – ou foram, até agora – suficientes para fazer um verdadeiro verão redentor.
A brutal assimetria econômica na sociedade resiste teimosamente e o cipoal formalista da arquitetura normativa do país enreda em seus labirintos tanto as ações de saneamento (“lava-jatos” de diversos tipos) como as eventuais leis em que o país assumiu a liderança mundial de modernidade (código da criança e do adolescente, proteção e sustentabilidade do meio-ambiente e da biodiversidade).
Diante dos chiliques que sacodem algumas excelências senatoriais, seja lembrado que ‘pindorama’ é uma das raríssimas terras da fantasia neste mundo, em que mandatos parlamentares (federais) gozam de imunidade ampla, geral e irrestrita. O instituto da imunidade foi estabelecido para proteger o mandatário da arbitrariedade autoritária que por ventura o quisesse perseguir ou punir por suas posições políticas. E somente políticas.
Delitos, infrações, crimes e quejandos de natureza cível ou penal não se abrigam sob a noção originária da imunidade. Mesmo se os ritos dos processos sejam diversos e específicos para as diversas categorias de agentes políticos.
No Brasil de 1988, a Constituição certamente exagerou na dose, incluindo – quem sabe sem ser proposital e sem antecipar as consequências –, na prática, uma letra “p” na imunidade, transformando-a em impunidade.
Lembremos: mais de um mandato parlamentar já foi cassado nos últimos 25 anos. Estatisticamente, mais do que em todo o tempo da República – excetuada a dura travessia do deserto entre 1964 e 1985.
Em 2015, o Supremo Tribunal Federal decretou a prisão do senador Delcídio Amaral (PT-MS), então líder do governo no Senado. Submeteu o decreto à soberana deliberação do Senado. Houve obviamente também muito faniquito, mas o Senado manteve a por 59 votos a favor, 13 contra e 1 abstenção, em 25.11.2015. Seis meses depois, o mandato do senador foi cassado por 74 votos favoráveis e nenhum contrário (1 abstenção).
Por que em 2020 seria diferente? Nem mesmo a gravidade do delito imputado ao senador de Roraima mereceu assentimento do STF ao pedido de prisão – apenas afastamento do mandato por 90 dias. Muita conversa de que se confia na justiça, etc e tal, mas acredite somente o ingênuo e a paradigmática “velhinha de Taubaté” de L. F. Veríssimo. Doutra forma, como entender a resistência de acrobata, e todos os subterfúgios para escapar do inquérito por piruetas formais?
O que temem esse senhor e seus associados? Pelas grandes investigações dos últimos tempos sabe-se que, quando se puxa o fio (seja ou não de uma roupa de baixo), desfazem-se as redes que encafuam desvios, apropriações indébitas, manipulações e logo põe-se a chover maços de dinheiro.
Ritualismos e falsos escrúpulos de prevenir independência entre poderes não apenas tornaram a cena política um cadafalso de fingimentos como instituíram a desarmonia como rotina do relacionamento – melhor dizendo: do atrito – entre os poderes.
Os prejuízos se avolumam, a opinião pública – entre frustrada e pasma – vira cada vez mais as costas às instituições. Não haveria porque espantar-se com a desafeição do povo por votar… – e boa parte dos que acabam eleitos cuidam de alimentar o dia-a-dia com as piores e mais horripilantes “surpresas”.
Insisto: comecemos a sanear a política pelo voto consciente, crítico e independente. Boa hora para renovar o jogo: as eleições municipais de 2020. Aproveite-se para ver a consagração eleitoral recebida pela primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern (no cargo desde 2017) em 17.10.2020: 64 dos 120 assentos no Parlamento! Uma primeira-ministra que começou a governar aos 37 anos, deu à luz um ano após e reconhecidamente pilotou a melhor gestão pública da pandemia CoVid-19 no mundo.
* Estevão de Rezende Martins, historiador, é professor emérito da Universidade de Brasília (UnB).