Da política externa à política estranha do Brasil

“Ninguém é realmente digno de inveja, e tantos são dignos de lástima!” – Arthur Schopenhauer.

Por Estevão de Rezende Martins * –  Políticas públicas no Brasil, em geral, parecem intermináveis travessias de desertos inóspitos, sem que jamais se chegue para valer às terras prometidas. Quando alguma dá certo, o alívio – e a surpresa – é grande. A cada tempo, determinadas coisas pareceram ser feitas na hora certa. Nacional-desenvolvimentismo e substituição de importações, malgrado ambiente de alinhamento mais ou menos cego à liderança estadunidense no período da Guerra Fria, soa como um exemplo. Interiorização da economia, autarquia de matérias-primas (antes de pegar a moda do anglicismo “commodities”), diversificação de parceiros e de financiamentos, outros exemplos. O ruim é que são desconexos, às vezes concorrentes entre si, entregues amiúde à feira-livre da mediocridade política e à resistente rigidez das elites do país.

A gradual descoberta de que os interesses nacionais ou são defendidos pelo próprio país ou sofrem as consequências de serem entregues à tutela e proteção (ou abuso) de potência externa, somente emergiu no Brasil, para valer, nos anos 1970.

Não só. O mundo vive essa tensão, aparentemente desde todo sempre. Variam as potências hegemônicas e o preço das subserviências. Subserviências às vezes justificadas (ou apenas explicadas) por adesões ideológicas ou mesquinhas e criativas, de corrupção moral. Isso parece ter valido para muitos países entre 1945 e 1990 – para ficar num período menos distante. Cá e lá da “Cortina de Ferro”, cá e lá dos sistemas econômicos…. “capitalismo liberal” ou “economia de planejamento”. Cada fórmula com seus feiticeiros e suas receitas. Cada qual com seus mercadores de ilusões.

O Brasil de 2019-2020 destaca-se no campeonato mundial de non-sense político internacional. Não que todas as políticas anteriores tenham sido maravilhas. Algumas certamente sim, como as que – por um momento e em determinada janela de oportunidades nos anos 1960-1970 – criaram uma pletora de empresas públicas (estatais) para fazer o que a opção de conforto da proteção de mercado e de compra de bens e serviços externos não permitia fazer, e que por longo tempo prevaleceu. E prevaleceu suprindo certo mercenarismo barato do empresariado e gerando uma avalanche de dívida impagável (e nada risível) em contínuo agravamento a partir da segunda metade dos anos 1970 (lembram-se do “primeiro choque do petróleo”?).

Como dizia, algumas políticas deram certo. A política nacional de pós-graduação, para qualificar o pessoal da pesquisa básica e aplicada é um bom exemplo – começou a engatinhar em 1975 e foi em ritmado crescendo até 2018, malgrado a escassez de recursos. O “plano Real” (1993-1994) recolocou a política monetária nos trilhos. Seu sucesso gerou enfim uma estabilidade de que o país tinha urgente necessidade e que planos anteriores não produziram. Essa estabilidade permite (ou permitiu), dentre outros aspectos essenciais da economia e das finanças, gerir mais ou menos bem a dívida pública então. De lá para cá, seu galopante crescimento, em especial desde 2011, causa séria preocupação. Só a dívida interna, em fevereiro de 2020, valia R$ 4,281 trilhões; seu financiamento vem-se tornando mais e mais difícil e custoso.

Uma política pública em especial pareceu merecer uma particular atenção, com algum sucesso: a política externa.

O “alinhamento automático” com os EUA, prevalente a partir de 1945, cede lugar em 1961 à “política externa independente” – um passo importante para o que depois ficou conhecido como multilateralismo. O pragmatismo universalista do Brasil não se alterou mesmo durante o período do regime militar. Interessou aos sucessivos governos guindar o país a posição de peça relevante no tabuleiro do xadrez internacional. Malgrado a modéstia de seus meios econômicos e financeiros, de certo modo a voz do Brasil, no plano regional (América do Sul) e no mundial (organismos multilaterais e acordos bilaterais), passou a ser ouvida – mesmo que não necessariamente seguida.

Parte do capital de autonomia que o Brasil adquiriu, malgrado as repetidas turbulências que sacodem o mundo desde a queda do Muro de Berlim, passou a ser desperdiçado a partir de 2003 com uma versão modificada do “movimento dos não-alinhados”, numa espécie de ressurreição extemporânea do “espírito” de Bandung (1955) e Belgrado (1961), em um mundoporém profundamente transformado. Mesmo que se discorde do que se fez entre 2003-2016, em termos de política externa – em particular por causa da cumplicidade com regimes abstrusos e corruptos, do abuso dos cofres públicos e das estatais, e de tantos outros malfeitos – cumpre reconhecer que ainda havia um mínimo de consideração pela vocação altaneira do Brasil no cenário internacional.

De 2019 para cá, em lapso brevíssimo de tempo, o país foi entregue a pessoas incapazes de formular uma linha política identificável, para além da subserviência tacanha e míope aos EUA. O acordo militar com os EUA, assinado em 2020, de certa maneira atualiza e moderniza o anterior, que vigorou entre 1952 e 1977, quando foi denunciado pelo Governo Geisel. Ainda não está valendo, pois ainda tramita no Congresso Nacional. Mas aponta para uma espécie de salto para o passado, em que a “amizade preferencial” passa à frente de todas as considerações multilaterais de custos e benefícios. Outro exemplo é haver votado com os EUA para eleger à presidência do BID, pela primeira vez desde sua fundação, um cidadão estadunidense (cuja origem cubana, no caso, é irrelevante), emanado do governo Trump e com este ativamente identificado.

Paradoxo semelhante ocorre com o acordo União Europeia-Mercosul ou com o acordo-quadro que envolve o Brasil (por causa, por exemplo, de questões de boas práticas ecossistêmicas de produção e comercialização de bens – objeto de alerta recente por parte do governo de nada menos que oito países europeus). Ou ainda com a hostilização gratuita de parceiros comerciais decisivos, sem os quais a balança pende para o abismo (como no caso da China). Não se pode deixar de mencionar a perda de prestígio galopante nos organismos multilaterais, como no sistema das Nações Unidas, pelo desalinhamento do que foi um dia uma atitude autônoma e soberana do Brasil.

De um país cuja política externa era visível e reconhecível, o Brasil passou à posição de um pré-pária, olhado e criticado por países de grande prestígio na cena internacional, como a Alemanha ou a França, ignorado na prática por outros – como a Rússia, a Índia ou a África do Sul – e a caminho de um provável isolamento, altamente prejudicial. Quanto à América Latina, falta pouco para completar a construção de um “muro da vergonha política” que acabe de isolar o Brasil de todos seus vizinhos imediatos. Em política internacional, estar só não é de bom alvitre e, em geral, aprofunda fraturas e agrava atritos.

Grandes diplomatas brasileiros, que enobreceram a Casa de Rio Branco como servidores do Estado, sem se submeter às idiossincrasias do governo de plantão, comentam nos últimos meses, incessantemente, o aviltamento da política externa brasileira. Pior: a irrelevância, se não a inexistência, de algo que ainda se pudesse chamar de política externa à altura de um país como o nosso.

Estranhos tempos esses, nos quais, sob pretexto de se afirmar, o governo brasileiro se envilece.

* Estevão de Rezende Martins, historiador, é professor emérito da Universidade de Brasília (UnB).

 

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