A justiça e os mestres do Direito

(por Célio Heitor Guimarães) – Quem acompanha com certa regularidade os escritos do acima assinado sabe que fui a vida inteira cercado de capas-pretas. Na família, em casa e no serviço público. Meu bisavô paterno, Francisco, foi juiz distrital (ou coisa semelhante) do Império, com jurisdição de São Paulo ao Rio Grande do Sul, incluindo o Paraná e Santa Catarina que sequer existiam. Meu pai foi membro do Ministério Público estadual e meu sogro juiz de Direito de comarcas paranaenses. Aí, Cleonice, minha mulher, entrou na minha vida (ou, melhor, eu entrei na vida dela) e trouxe não apenas a beca do pai, mas também, o nome, o peso e a história do avô Clotário de Macedo Portugal, desembargador, tido até hoje como o patrono do Judiciário do Paraná. Seguiu-se a ala de tios e primos, todos igualmente devotos da deusa Themis e todos com assento em fóruns, varas judiciais ou câmaras julgadoras. Importante: excluindo os mais recentes, que ainda estejam na atividade, ninguém, em tempo algum, desfrutou de auxílio-moradia, auxílio-transporte, auxílio-alimentação, auxílio-livro, auxílio-saúde ou outras tantas verbas indenizatórias de legalidade duvidosa e indiscutível imoralidade, indecência e inoportunidade.

Pessoalmente, assinei o ponto durante 35 anos no Poder Judiciário, como funcionário da secretaria do Tribunal de Justiça do Estado. Nesse tempo, conheci muito magistrado digno, probo, cumpridor do dever, que dignificava a profissão e honrava a toga. Mas convivi, também, com muito canalha enfiado debaixo dessa mesma toga. Oportunistas, malandros, trambiqueiros, ignorantes despreparados e fantoches subservientes, protegidos pelo cargo, pelo espírito de corpo e por entidades associativas mais preocupadas em justificar o injustificável e ampliar benefícios do que higienizar a classe.

Por tudo isso, acho-me em condições de dar a minha opinião, dizer o que penso, sobre o tema, sem constrangimento, pejo ou temor, e o tenho feito.

Quanto me aposentei – e já faz algum tempo, graças a Deus! –, numa espécie de catarse, enviei uma mensagem pessoal de despedida ao desembargador Luiz Renato Pedroso, ainda em atividade, que fora amigo de meu pai e de meu sogro, na qual lhe confessava que ia para casa com duas certezas absolutas, formadas no convívio diário com o Judiciário: uma, justiça não existe. Existe jogo de interesse, que é submetido à análise do PJ. O interesse mais forte prevalece. Justiça mesmo só se faz quando não houver interesse em jogo. Aí, cumpra-se a lei e faça-se justiça. A outra certeza, derivada da primeira: o crime compensa.

A Operação Lava-Jato, desencadeada pela Polícia Federal, Ministério Público e magistratura, vinha contradizendo as minhas certezas. Chegou aonde ninguém havia chegado, desvendou patifarias seculares, puniu e colocou na cadeia figuras estreladas da vida nacional, sustentadas pelo poder, pelo capital e pela corrupção, como antes nunca se fizera.

O uso do pretérito imperfeito do verbo vir foi proposital. “Vinha” porque, agora que a matéria chegou ao Supremo Tribunal Federal, não se sabe se continuará vindo.

Nunca se sabe o que, de fato, sairá das cabeças dos sábios da Corte Superior. Ali, tudo pode acontecer. Desde o desrespeito da jurisprudência estabelecida por eles até a mudança repentina de concepção já consolidada ou a extração da lei aquilo que ela não contém, como se o julgamento dependesse de quem está sendo julgado ou do estado de espírito do julgador. Ali, mais do que a norma legal, prevalece o exibicionismo, o ego exacerbado, o duelo de saber e, muitas vezes, interesses outros, que não são bem a busca da justiça. E aí o julgamento equivalerá a um tiro disparado no próprio pé. Isto é, a decisão contraria o já decidido pelo próprio tribunal.

Um bom exemplo é o conhecimento do HC impetrado em nome de Lula da Silva contra decisão do STJ, quando a Súmula 606, reafirmada pela Súmula 691, do mesmo STF, estatuí não ter cabimento habeas corpus contra ato de ministro relator ou contra decisão colegiada de tribunal superior.

Em outubro de 2016, o mesmo Excelso Pretório consolidou o entendimento do cumprimento de pena após a condenação por colegiado de 2ª instância, com repercussão geral. Com base nessa decisão, o juiz Sérgio Moro, de Curitiba, condenou Lula a 9 anos e meio de prisão e, amparado na mesma jurisprudência, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região não apenas confirmou a condenação como ampliou-a para 12 anos e um mês. Desse modo, se na quarta-feira 04/04 os eminentes ministros do Supremo concederem o HC requerido pelos patronos de Luiz Inácio, ignorando o que eles próprios estipularam, estarão dando não mais um tiro no pé, mas no próprio coração da instituição judiciária.

Aliás, a propósito de meu comentário, publicado no sábado 24/03 (“Triste esboço de ópera-bufa”), recebi uma admoestação de um jovem amigo, mestre de Direito do Estado, que se encaixa como fecho do presente texto:

“Se você quiser achar um grande jurista, não procure no STF. Mesmo que alguns possam tomar algumas decisões que lhe agradem, não há ali, atualmente, nenhum ministro que mereça os seus elogios. As medidas excepcionais do STF, inventadas caso a caso, são rotina. Não é esse caso que foge à regra. Quanto não é um ministro, é outro, que quer ser o paladino da justiça (conforme determinados interesses), para ir além do que a Constituição permite ou o que os precedentes autorizariam”.

(Texto publicado originalmente no blog do jornalista Zé Beto)

 

4 COMENTÁRIOS

  1. Texto de cartaz que eu sempre vejo nos cartórios de imóveis: ” Só é dono quem registra”. E isso foi solemente ignorado no julgamento do triplex. E como era mesmo aquela história desse que não existe justiça, mas interesses? Pergunta boba: poderiam ser interesses dos EUA, por exemplo?

  2. Gostei do texto mesmo não concordando com o mote central. Mas da bastante debate. Como por exemplo, da constatação que a rede de relacionamentos funciona muito nesta área. Parece que ser amigo ou parente de juiz da vantagem comparativa em tudo. Dos processos à carreira profissional dentro do Judiciário.
    Vejo ai um dos problemas pois acaba virando uma casta, onde só os “iniciados” e bem nascidos se dão bem . Tinha esperança que com a politica de cotas isso viesse em médio prazo acabar e colocar nas Judiciárias pessoas de outros extratos da sociedade, de presencia os mais pobres , para poder arejar e democratizar a aplicação das leis, que hoje são um instrumento de opressão ao povo pela origem de classe da imensa maioria dos seus atuais apli9cadores.
    Dito isso,. Vamos ao principal. É divertido ler advogado do Paraná e do restante do Brasil. Se for de Curitiba a risada e maior ainda. Tudo isso que o ilustre argumentou para achar que o Lula já deveria estar em cana é derrotado por inúmeros juristas de outros locais. Suponho que há ai mais uma aparição do espirito de classe , também chamado de corporativismo. E acho um deboche se falar que não tem jurista em Brasília. Isso existe no Paraná? Se existem, melhor atualizar o diploma e os livros pois a Constituição foi jogada na privada, principalmente pelos advogados da panela de Curitiba e seus interesses financeiros.
    E quem sou eu pra discordar do moro que esta semana admitiu publicamente, naquele seu tatibitate clássico, que para haver a prisão em 2ª instancia seria melhor mudar a Constituição. Se ele diz isso e o autor deste texto diz o contrario, que pode prender o Lula desde ontem, imagina no STF. Faz o que a globo e o Paraná querem ou cumprem a Constituição? O que o advogado me aconselha?
    E vamos combinar que se em 5 anos de faculdade e 35 anos de trampo, não aprendeu a diferenciar um indicio de uma prova concreta tá na hora de se dedicar a outros temas.
    Vou dar uma força e ajudar:
    Prova concreta é : conta na Suiça, grana no cofre, barra de ouro no cofre, mala com grana, cunhado enriquecendo.
    Indicio é: apartamento com dono certo mas que é “atribuído” a outro com prova apenas no ouvi dizer, também conhecido como “delação premiadíssima”.
    Se ficar difícil de entender , eu desenho.

  3. Belo texto que serve para clarear o ambiente em análise. Embora com sérias restrições, ainda confio no STF, apesar de julgá-lo a pior composição desde que sei sobre sua existência. Não apenas na formação, querendo dizer conteúdo, de cada um dos Ministros ali situados politicamente, mas pelo destempero que demonstram tanto nas relações internas, quanto na relação com a sociedade, especialmente naqueles momentos em que se intrometem nas discussões, expõem publicamente seus pontos de vista, induzindo, assim, atuais ou futuros julgamentos deles próprios e de instâncias inferiores, muitas vezes podendo utilizar jornalistas a soldo para opinarem a favor ou contra determinados interesses. Enfim, apesar disto tudo, ainda confio em que, neste caso específico, do criminoso que organizou talvez a maior organização criminosa conhecida, essa composição menor de um Supremo Tribunal Federal, adquira vergonha e saiba distanciar-se da vulgaridade momentânea e defina pela retomada da moralidade jurídica, política e social.

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