Brasil: a terra dos constitucionalistas de araque

Por Estevão de Rezende Martins – “Não se pode fazer política com o fígado, conservando o rancor e ressentimentos na geladeira. A Pátria não é capanga de idiossincrasias pessoais. É indecoroso fazer política uterina, em benefício de filhos, irmãos e cunhados. O bom político costuma ser mau parente.”

 “A grande força da democracia é confessar-se falível de imperfeição e impureza, o que não acontece com os sistemas totalitários, que se autopromovem em perfeitos e oniscientes para que sejam irresponsáveis e onipotentes”.

(Ulysses Guimarães. Epigramas. Edição Comemorativa do Centenário de Nascimento, Câmara dos Deputados, 2016).

5 de outubro de 1988. Plenário da Câmara dos Deputados, funcionando como plenário da Assembleia Nacional Constituinte (ANC). Eu estava lá (nela trabalhei diretamente desde 1.2.1987).

Ulysses Guimarães, presidente da ANC, promulga o texto da nova constituição, após cerca de ano e meio de intensa participação e negociação. Algo como uma carta de alforria, a Constituição foi qualificada por dr. Ulysses como “cidadã”. Coerente com sua trajetória política, dr. Ulysses catalisou nessa expressão o sentimento generalizado de que o Brasil enfim reencontrava o curso de certa normalidade institucional, após longos anos de autoritarismo e arbitrariedade. Exprimia assim esperança e confiança.

Quanta água passou debaixo da ponte republicana desde então! E quão turvo se foi tornando esse caudal, contaminado por crises e mais crises, econômicas, políticas, morais….

A Constituição, que comemora bem ou mal 32 anos de vigência em breve, foi emendada 113 vezes: 3,5 vezes ao ano em média! Muitas emendas foram indispensáveis, pois em 1988 o texto incluía elementos catárticos de acerto de contas com o passado e elementos utópicos de sonhar com o paraíso na Terra por força da lei.

Nem tudo pôde ser executado, nem tudo corrigido, nem tudo respeitado para valer. Em geral, contudo, a Constituição foi vista como um salto qualitativo para o futuro.

No caminho até 2020, a arquitetura institucional e política brasileira transformou a Constituição em uma espécie de talismã utilizável em todas as direções e para quaisquer interesses. Todo mundo palpita, em especial os sem preparo, achando-se inigualável constitucionalista de botequim ou praia. Ou melhor: de rede (as)social: solta o verbo e não mede as consequências. Para tal tipo de “constitucionalista” lei boa é a que o beneficia; toda lei que o prejudique, é ruim. Um novo solipsismo jurídico autocomplacente e radicalmente egoísta.

Destaco hoje apenas um aspecto frequentemente fustigado no espaço público e repercutido na mídia: o da judicialização da política, que tanto faz fremir as arquibancadas. Juízes e tribunais viraram terceiro turno eleitoral e parlamentar permanentes.

A mania política brasileira de dificilmente engolir uma derrota introduziu sorrateiramente um mecanismo quase automático de correr para chorar no ombro da toga, para consolar-se de haver perdido ou para obter anulação, correção, inversão de normas. Conflitos interpretativos do regimento interno das Casas do Congresso Nacional, procedimentos de escolha de membros de comissões, direito de passear entre partidos como se nada fosse (ignorando o compromisso – pelo jeito para lá de teórico – assumido com o eleitor que votou), e assim por diante.

Não me detenho em todas instâncias. Fico com o fato de que o Supremo Tribunal Federal (STF) passou a ser tratado como um balcão de armazém, no qual o plantonista tem de ficar resolvendo querelas de vizinhos ou conflitos de ciumentos. Decisão favorável ao lamuriento: viva o juiz! Se monocrática: vejam só, um juiz sensível à causa do bem e da justiça. Decisão contrária ao queixoso (sobretudo monocrática): o juiz não presta, é incompetente, tem segundas ou terceiras intenções, não passa de vassalo de interesses escusos, e por aí vai. Se a política se refugia na judicialização, o risco de politizar a justiça vai de quebra.

Haja varejo frívolo a galvanizar a atenção do público! É certo também que mais de um togado se compraz em ter seus 15 minutos de glória palpitando sobre tudo e todos, ao invés de preservar a distância crítica e a dignidade específica de sua corte.

Confunde-se o atual ocupante de determinado cargo com a instituição. “Não gosto do juiz tal”, logo feche-se o STF, suprima-se o Superior Tribunal de Justiça (STJ), e assim por diante. Não concordo com o que diz o presidente da República, logo haveria que eliminar a república e restabelecer a monarquia?

Pois há quem pense assim, já que não consegue ver além de um palmo à frente do próprio nariz.

Ora, tal imaturidade política pode até ser corrente entre os que desconhecem o formato institucional da república, mas não deveria ser de modo algum corriqueira entre cidadãos no mínimo com escolaridade completa. Não se deve confundir “quem” (as pessoas passam) com o “quê” (a instituição obviamente fica).

Onde está o erro? Provavelmente numa indigente, distorcida cultura política do país e em particular na circunstância de a Constituição haver mantido proteções e privilégios de certas categorias políticas e profissionais, além de haver preservado o mecanismo processual interminável da dupla jurisdição (melhor seria já dizer ‘múltipla jurisdição’).

Com isso, a cidadania suposta por dr. Ulysses como espinha dorsal da Constituição acabou exilada no plano abstrato das definições da filosofia política. O corpo constitucional do gigante adormecido está coberto de remendos. Pior ainda: todo mundo acha que suas preferências têm de ser “constitucionalizadas” ou então que se suprima a Constituição. Com isso, são legião as propostas de mudar a Constituição (ou a ameaça de o fazer, para imprimir sua cara pessoal nas instituições, à maneira fascista e personalista). O mesmo vale para as constituições estaduais e para as leis orgânicas dos municípios. É um cipoal em que o melhor GPS político-institucional sofre para indicar o caminho.

Acresce que nos últimos trinta anos o número de escândalos financeiros de corrupção entre gente com mandato eletivo ou nomeado para cargo “de confiança” (sabe-se lá de quem…) aumentou exponencialmente. É preciso lembrar que o eleitorado aparentemente não deixa de eleger pessoas nada recomendáveis. Também importa recordar que eleição não é sinônimo de canonização.

A ‘Constituição cidadã’ precisa de ser preservada pelos cidadãos que pensam o todo da sociedade e do país, que sabem hierarquizar os interesses e arbitrar os conflitos entre os egoísmos. Tais cidadãos são eleitos para os cargos políticos com mandato definido, submetem-se ao crivo regular do eleitorado, do conjunto dos cidadãos que encarnam a nação.

A cidadania é um estado de espírito e o esteio da organização da sociedade em estado. Não tem prazo definido: é permanente e irrenunciável. Sua moldura é a Constituição; sua conformação, o estado democrático de direito; sua legitimidade, a soberania absoluta do povo.

Estevão de Rezende Martins, historiador,  é professor emérito da Universidade de Brasília (Unb).

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui