Não há nada pior que o jornalismo a favor

O governismo é o pior dos partidarismos. E não há nada pior que o jornalismo a favor

* Eugênio Bucci, O Estado de S.Paulo

Jornalistas americanos costumam brincar com uma ideia que à primeira vista parece um paradoxo: o advento de Donald Trump, eles dizem, foi péssimo para o país e ótimo para o jornalismo. Em passagem recente pelo Brasil, Steve Coll – duas vezes premiado com o Pulitzer e atualmente diretor da Escola de Jornalismo da Columbia University – lembrou a anedota em suas falas. Donald Trump, uma figura que inspira preocupações planetárias quanto à paz mundial, a neutralidade da rede na internet, o equilíbrio ecológico e os direitos das minorias, teria trazido um novo fôlego para as redações.
Entre outros indícios desse novo fôlego está o crescimento da carteira de assinantes do diário The New York Times. Depois de sofrer alguns ataques covardes do novo presidente americano e de seus assessores, o Times ganhou, em apenas um ano, quase 800 mil novos assinantes. As explicações para esse verdadeiro renascimento são múltiplas, mas uma delas nos interessa de perto: por algum motivo, cidadãos sentiram necessidade de sustentar o jornalismo crítico e tecnicamente bem feito para sustentar, também, um lugar para o registro da verdade factual. Graças a isso, equipes jornalísticas de boa qualidade (ou mesmo de qualidade excelente) vêm se mostrando capazes de prosperar enquanto o país padece.
O paradoxo, no entanto, é apenas aparente. Há por trás dele uma lógica retilínea, direta e cartesiana. Como o valor da imprensa decorre de sua habilidade (e coragem) de fiscalizar e reportar os desvios do poder por meio de reportagens confiáveis, é natural (e perfeitamente racional) que, quando repórteres competentes apontam abusos de governantes, a sociedade democrática os reconheça como imprescindíveis. Jornalismo em confraternização ininterrupta com presidentes da República não tem serventia. Jornalismo que facilita o expediente dos poderosos é o oposto do que deveria ser. O jornalismo que tem valor real é aquele que dá visibilidade aos fatos que os governos prefeririam esconder. Eis aí, enfim, uma das possíveis explicações para o crescimento do New York Times ao longo do tormentoso período do trumpismo.
E em relação ao Brasil, o que poderíamos dizer? Por enquanto, pouca coisa. Nossa imprensa apenas sofre com a crise. Nesse ínterim, muitos profetas trombeteiam fórmulas mirabolantes de marketing digital para ampliar a geração de lucro nas redações convencionais, num falatório um tanto inócuo e ininterrupto. À medida que suas promessas se frustram, outras pipocam no mesmo lugar e são igualmente vãs. Invencionices e modismos não resolverão o desafio. Convergências de plataformas, soluções transmidiáticas, sinergias com foco no mercado, reengenharias recauchutadas, etc., não darão conta de trazer novo fôlego para a imprensa.
Só o que pode salvar o jornalismo é o jornalismo. Nada de novo sob o Sol. O que o futuro espera dos jornalistas não é diferente do que o passado esperou deles: um cardápio de apurações criteriosas que trafeguem na contramão da agenda do poder (seja qual for o poder) e um painel de opiniões e análises que, em lugar de reforçar e de repisar preconceitos, ajudem o cidadão a pensar livremente em meio à diversidade.
Por certo a imprensa no Brasil tem boa qualidade, assim como tem aberturas razoáveis para o pluralismo. Mas se quiser de verdade vencer a crise, ampliando seu público numa estratégia de densidade intelectual e informativa, terá de se distanciar ainda mais do poder e de seus encantos ideológicos. Ser livre, para a imprensa, significa ser obstinadamente livre. Ser confiável significa ser radicalmente comprometida com a verdade factual. Ser plural implica a atitude de acolher e promover o contraditório. Sem isso as agendas do poder estão prontas para capturá-la, roubar-lhe a aura e, por fim, matá-la.
Nesse quadro, o maior desafio para a imprensa brasileira continua sendo o apartidarismo. Se não entender que o apartidarismo consiste numa forma de militância de método contra o partidarismo, os jornais brasileiros dificilmente superarão os obstáculos mais graves.
Para entender melhor esses obstáculos fixemo-nos num caso real do presente: a cobertura da reforma da Previdência. Será que os argumentos contrários à reforma – ou os argumentos que fazem restrição a aspectos da reforma que vem sendo proposta – têm o mesmo destaque que os argumentos a favor? Ou será que as páginas dos jornais têm funcionado como correia de transmissão da agenda do governo federal e de setores majoritários do empresariado?
Na semana passada o presidente Michel Temer e seu ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, candidatíssimo a suceder ao chefe, elogiaram a imprensa pelo apoio que ela, na visão deles, viria dando à reforma. Disse Michel Temer: “Não há momento melhor. Os senhores podem perceber que a imprensa toda brasileira, sem exceção, está apoiando com editoriais e notícias. Então, a hora é agora”. Meirelles não deixou por menos: “A mídia apoia integralmente”.
São palavras mais do que constrangedoras. Se Temer e Meirelles estão errados, suas declarações são um acinte. Se estão certos, o que ambos enunciam é o diagnóstico de um desastre.
Vale insistir na pergunta: nossa imprensa está comprometida em cobrir de forma apartidária, crítica e informativa a reforma da Previdência, ou “está apoiando com editoriais e notícias” a pauta que o governo quer aprovar? A nossa imprensa quer ser mesmo imprensa, ou se acomodará como uma ferramenta de propaganda governista?
Por mais justa e necessária que seja, a reforma da Previdência nunca deveria ser uma “causa” dos jornais. Na democracia moderna, a causa dos jornais é a informação. Ponto. O governismo é o pior dos partidarismos. E não há nada pior para o jornalismo que o jornalismo a favor. Não é por aí que os nossos jornais ganharão 800 mil novos assinantes em um único ano.

* Jornalista, é professor da ECA-USP

2 COMENTÁRIOS

  1. Para completar, hoje a folha diz que a globo e o temer se encontraram para se acertarem Posso acreditar em alguma coisa, alguma linha, qualquer letra publicada na grande mídia ou devo me considerar vivendo naquele mundo do duplipensar do 1984? Onde a verdade e o interesses são siameses?

  2. “Como o valor da imprensa decorre de sua habilidade (e coragem) de fiscalizar e reportar os desvios do poder por meio de reportagens confiáveis, é natural (e perfeitamente racional) que, quando repórteres competentes apontam abusos de governantes, a sociedade democrática os reconheça como imprescindíveis.”

    Desculpem o mau humor. Li o texto e vejo mais uma daquelas atitudes de fazer de conta que não é comigo, que o problema e o inferno são dos outros.

    Não concordo em nada com o que o professor escreveu sobre a valor da imprensa. Coloca esta frase num Congresso ou nos auditórios do Instituto Milênio e vamos ouvir as gargalhadas. Ate dos donos do estadão onde o cara publicou.

    Imprensa é instrumento de classe. Inclusive o ContraPonto. Tira a globo da equação dos acontecimentos de 2013, de 2016 e vamos ver se o golpe teria sido concluído. O raciocínio serve para 1964 pois desde ali o golpismo já era evidente.

    Ouvi do Álvaro, este docinho de coco tão adorado de certo pela combatividade, na CBN em 2012 que a verdadeira oposição no Brasil era a imprensa que combatia o lulismo, visto que no Congresso e no voto popular estava difícil. O Álvaro mesmo, ganhou mais notoriedade vazando documentos para a veja.

    O que me formou como leitor graças a Deus não foi a gazeta do povo. Comecei com o JB aos 10 anos. Li Realidade, Li Seleções, li Tribuna da Imprensa, Li a Veja do Mino, depois li a Senhor e Isto é quando o Mino comprou LI a Folha do Claudio Abramo. E muito Pasquim. movimento Hora do Povo, Companheiro…

    Logo não achem que o escrito acima tem algo com a realidade atual. A mídia hoje é mais neblina que farol.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui