Há 60 anos, o presidente Jânio da Silva Quadros (1917-1992) deixou o Brasil atônito. Sem aviso prévio, ele enviou um bilhete ao Congresso Nacional comunicando que havia abandonado a Presidência da República. O governo, que deveria ter durado cinco anos, chegou ao fim pouco antes de completar sete meses. A renúncia ocorreu em 25 de agosto de 1961.
Documentos históricos guardados no Arquivo do Senado mostram que inclusive os senadores e deputados federais da base governista foram surpreendidos pela renúncia. Numa tentativa desesperada de impedir que o ato se consumasse, o senador Lino de Mattos (PSP-SP) quis rasgar o bilhete presidencial. Ele próprio narrou o episódio logo depois:
— Tentei obstar a entrega do documento [ao vice-presidente do Senado], pretendendo tomá-lo das mãos do ministro [da Justiça] Oscar Pedroso Horta, até mesmo meio à valentona. Sua Excelência declarou-nos, no entanto, que se tratava de documento sério, assinado por um homem sério, para produzir efeito sério, que estavam distribuídas à imprensa as respectivas cópias e que, nessas condições, não adiantava qualquer atitude. O presidente já se demitira do posto e não se encontrava mais em Brasília. Não adiantava mais a destruição do documento.
A renúncia, segundo os historiadores, seria o primeiro passo de um autogolpe de Estado. Pelos planos não declarados de Jânio, a renúncia não seria aceita pelo Congresso, pelas Forças Armadas e até pelo povo, que lhe implorariam que reconsiderasse. Ele, então, aproveitaria o clamor geral e, como condição para a volta, exigiria mais poderes para governar do que os previstos pela Constituição de 1946. Tendo êxito o autogolpe, Jânio alcançaria o objetivo de se transformar num presidente forte ou até mesmo num ditador.
Os documentos do Arquivo do Senado também mostram que os parlamentares se recompuseram logo do terremoto provocado pela renúncia e, enxergando as intenções de Jânio Quadros, agiram para abortar o plano golpista. O Congresso Nacional aceitou a renúncia sem nenhum questionamento e, deixando Jânio para trás, começou a discutir as condições para a posse do vice-presidente João Goulart.
Num discurso logo após a renúncia, o senador Argemiro de Figueiredo (PTB-PB) disse que foi acertada a decisão do Congresso de não cair na armadilha de Jânio Quadros:
— Para fazê-lo voltar [à Presidência da República], seria mister a instituição preliminar de um regime janista, de uma Constituição janista, de leis janistas, de costumes janistas. Garroteiem a voz do povo que reivindica e protesta, calem a palavra do Congresso e fechem os jornais que debatem, orientam, advertem. Aí teríamos um regime governamental compatível com o temperamento do senhor Jânio Quadros. Mas isso seria a renúncia às nossas conquistas liberais. Seria a morte da democracia.
No mesmo pronunciamento, Figueiredo resumiu:
— A renúncia ao governo foi a tática premeditada de um homem que se julgava o único capaz de reorganizar a vida nacional. Renunciou como Bolívar, para voltar mais forte. Nunca pensou que lhe aceitariam a renúncia. Esperou retornar ao governo nos braços do povo e das gloriosas Forças Armadas para dirigir a nação como a queria governar: sozinho, mandando sozinho. A renúncia foi a primeira etapa do processo de uma ditadura que se tinha em vista.
Também atordoado pela renúncia, o ministro das Relações Exteriores, Afonso Arinos, às pressas enviou um telex ao Congresso Nacional advertindo que o ato poderia trazer consequências catastróficas para o Brasil e que, por isso, os parlamentares deveriam discutir a fundo a conveniência de aceitar a saída do presidente. Para acelerar a consumação da renúncia, o vice-presidente do Senado, Auro de Moura Andrade (PSD-SP), preferiu engavetar o telex sem apresentá-lo aos colegas:
— Devo declarar ao Senado que não trouxe ao conhecimento da Casa o referido telex enviado pelo ministro das Relações Exteriores porque tive razões para esse comportamento. Não me era ele nominalmente dirigido. Não se dirigia ao Congresso, não se dirigia ao Senado, não se dirigia à Câmara. Não tinha destinatário. Assim sendo, eu não poderia dar-lhe destino. Foi a razão pela qual o guardei ao recebê-lo.
O presidente Jânio Quadros sabia que as Forças Armadas não tolerariam a posse do vice João Goulart. Jango, como era conhecido, mantinha estreitas relações com os sindicatos trabalhistas, muitos dos quais dirigidos por comunistas. Isso despertava nos militares, mais identificados com a direita, o medo de que o Brasil governado por Jango tomasse o caminho do comunismo.
Quando veio a renúncia, Jango se encontrava na China, numa missão oficial armada por Jânio. O presidente trabalhou para que o vice estivesse justamente num país comunista no momento em que a crise estourasse. As supostas inclinações comunistas do vice se tornariam inquestionáveis.
Conforme a previsão de Jânio Quadros, os militares de fato vetaram a posse de Jango. Diante dessa ilegalidade, o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, ameaçou pegar em armas para garantir o cumprimento da Constituição. A renúncia, portanto, deixou o Brasil à beira de uma guerra civil.
O senador Alô Guimarães (PSD-RS) subiu à tribuna do Senado e leu o seguinte trecho de um editorial do jornal O Globo:
— O senhor Jânio Quadros renunciou na esperança de provocar derramamento de sangue ou pelo menos para provocar a ameaça de derramamento de sangue. Não renunciaria se depois de cuidadosa meditação não tivesse chegado à conclusão de que o derramamento ou a ameaça de derramamento de sangue teria o efeito por ele visado: a nação, ante o mal maior, aceitaria o mal menor, isto é, a ditadura do senhor Jânio Quadros. A verdade é essa.
Guimarães concluiu o discurso afirmando que o Congresso Nacional seria firme e que, portanto, o ex-presidente deveria esquecer de vez o plano de ser reconduzido com superpoderes ao Palácio do Planalto:
— O que não se pode agora é pretender modificar as instituições para que se cogite do retorno do senhor Jânio Quadros ao poder. Isto até já não é mais constitucional. Seria um ato de rebeldia a que nos oporíamos.
A guerra civil só não estourou porque os senadores e deputados negociaram com Jango a adoção do parlamentarismo, em substituição ao presidencialismo vigente desde 1889. O presidente passaria a dividir o governo com um primeiro-ministro. Com os poderes presidenciais de Jango limitados, as Forças Armadas aceitaram a posse. Duas semanas depois da renúncia, a crise enfim se encerrou. Mais tarde, por meio de um plebiscito em 1963, os brasileiros decidiriam pela volta do presidencialismo.
Acompanhada do bilhete de renúncia, Jânio Quadros enviou ao Congresso Nacional uma breve carta em que justificou a atitude. Em termos vagos, ele escreveu que tentara combater a corrupção, mas fora “vencido pela reação” e “esmagado” por “forças terríveis”.
Para os observadores da política, a renúncia de Jânio Quadros não chegou a ser de todo surpreendente. Ele havia feito um movimento muito parecido em 1960, quando ainda era candidato. Embora tenha sido eleito presidente com o apoio da UDN, o poderoso partido de direita, Jânio pertencia ao PTN, um partido paulista inexpressivo na política nacional. Insatisfeito com a ascendência da UDN sobre a sua candidatura, ele abandonou a disputa. Com a faca no pescoço, a UDN não teve alternativa senão ceder. Jânio voltou à corrida presidencial depois de ganhar carta branca para dirigir sozinho a campanha eleitoral.
O senador Victorino Freire (PSD-MA) revelou que Jânio ensaiou a mesma estratégia chantagista ainda nos primeiros meses no Palácio do Planalto:
— Muitas vezes debati com Sua Excelência [Jânio Quadros], com intimidade, problemas nacionais, e uma das forças de reação de que se queixava era justamente o Congresso. Era uma injustiça de Sua Excelência, porque esta Casa deu-lhe todas as medidas de que necessitou, aprovando todos os vetos do governo, com exceção de um que dizia respeito à estabilidade dos funcionários da Novacap [empresa estatal que construiu Brasília]. No dia em que o Congresso o rejeitou, Sua Excelência se preparou renunciar ao governo. Foi impedido por seus auxiliares e sobretudo pelo eminente ministro Pedroso Horta, que submeteu o assunto à Corte Suprema justamente para evitar que se consumasse o gesto do senhor Jânio Quadros.
O clima de golpismo permeou praticamente todo o curto governo de Jânio Quadros. Quando estudantes universitários organizaram uma greve em Recife, o presidente mandou tropas do Exército e até navios da Marinha reprimirem o movimento — uma demonstração exagerada de força bélica. Em outro momento, sem maiores explicações, transferiu a sede do governo federal provisoriamente de Brasília para São Paulo — dando a entender que na capital paulista, seu reduto eleitoral, poderia melhor se defender de uma tentativa de golpe de Estado.
O golpismo pode ser explicado pela aversão de Jânio Quadros à negociação e à divisão do poder. Ele se elegera com o discurso de que não gostava dos partidos e dos políticos e que, com sua “vassourinha”, varreria para sempre a corrupção do Brasil. Apesar de a UDN ter empregado toda a sua força para ajudar a elegê-lo, o presidente não recompensou a sigla com o espaço no governo que ela julgava merecer.
O senador Argemiro de Figueiredo analisou:
— O senhor Jânio Quadros, tendo sido eleito por uma onda civil revoltada contra os sistemas anteriores, eleito pelo povo sem distinção de correntes partidárias, eleito com essa formação revolucionária da opinião pública em torno do seu nome, na prática do governo se esqueceu da atuação costumeira da vida da República. A sua renúncia ao governo significou a sobrevivência da República e da democracia.
O mandatário não teve maioria no Senado e na Câmara nem se esforçou para construir um governo de coalizão. Ele não recebia senadores e deputados no Palácio do Planalto. Na Câmara dos Deputados, a oposição chegou a planejar um pedido de impeachment do presidente.
Jânio tentou minar a autoridade dos governadores criando escritórios do governo federal nos estados — em vez de recorrerem aos governadores, os prefeitos preferiam buscar a ajuda desses escritórios. Os ministros recebiam ordens presidenciais por meio de bilhetinhos, que frequentemente eram vazados para a imprensa — isso podia deixá-los em situação constrangedora e até humilhante.
O senador Victorino Freire contou aos colegas outro episódio revelador da personalidade autoritária de Jânio Quadros:
— Eu disse a Sua Excelência: “Você só quer escrever a lei em papel sem pauta, mas o Congresso tem que escrevê-la em papel pautado. Vetam [seus projetos] a UDN, o PSD, o PTB e todos os partidos porque [no Congresso] não se discute em termos partidários, mas em termos de interesse público”. Respondeu-me ele: “O Congresso não pode rejeitar o [meu] veto porque eu veto sempre certo”.
O senador Argemiro de Figueiredo reforçou o argumento do colega:
— O Congresso, para ele, era a expressão de um poder inútil e até nocivo. A ordem legal do país era um estorvo abominável quando a sua vontade se conflitava com os preceitos constitucionais. Não se domesticava a ninguém, nem mesmo à própria lei. O homem sempre me pareceu, por temperamento e vocação, a figura típica de um ditador civil.
Em sua renúncia, Jânio Quadros adotou elementos do suicídio de Getúlio Vargas, sete anos antes. Ele também escreveu uma carta dirigida à nação, dizendo que suas boas intenções foram freadas por forças adversárias. A data do ato foi escolhida a dedo. Enquanto o suicídio ocorreu em 24 de agosto, a renúncia se deu em 25 de agosto. A diferença é que, no caso de Getúlio, o povo tomou as ruas de diversas cidades para manifestar apoio ao presidente morto.
Jânio Quadros provavelmente acreditava que os brasileiros se mobilizariam exigindo sua volta à Presidência da República por causa das medidas de cunho moralizante que tomara, como a proibição das brigas de galo, a obrigação de os funcionários públicos federais vestirem uniforme, o veto aos trajes de banho nos concursos de beleza feminina, a criminalização do lança-perfume e o fim das corridas de cavalo nos dias de semana. Foram medidas de grande apelo entre as famílias conservadoras.
Ele também acreditava que contaria com algum apoio dos setores da sociedade mais à esquerda, como os sindicatos, pelo fato de ter começado a reatar as relações diplomáticas com países comunistas, apoiado a autodeterminação de Cuba e condecorado Ernesto Che Guevara, um dos ministros do governo cubano — tudo isso como parte da chamada Política Externa Independente.
Até mesmo o presidente da UDN, deputado Herbert Levy (SP), apesar de ter sustentado a candidatura de Jânio Quadros em 1960, deu a entender que também enxergava golpismo na renúncia:
— O ato da renúncia só pode ser explicado por duas hipóteses: ou foi um ato temperamental do senhor Jânio Quadros, ou foi um ato meditado, planejado. Se foi temperamental, estaríamos diante de uma irresponsabilidade, de uma leviandade. Se foi deliberado, se pensava em renunciar, estava obrigado a preparar sua saída, sem a prejudicar o país, sem a ameaça de nos levar ao caos. Como não preparou sua saída, a gravidade é muito maior, pois, neste caso, o senhor Jânio Quadros desejaria convulsionar o país.
De acordo com o historiador Felipe Loureiro, especialista nos governos de Jânio e Jango e coordenador do curso de relações internacionais da Universidade de São Paulo (USP), embora não se conheçam todos os detalhes do plano, a intenção do presidente era, sim, dar um autogolpe:
— Jânio Quadros teve uma carreira política meteórica. No curto período de pouco mais de dez anos, ele foi vereador, deputado estadual, prefeito, governador, deputado federal e presidente da República. Ele conseguiu esse feito por força da sua imagem pessoal. Jânio sempre utilizou os partidos políticos de forma pragmática, conforme seus interesses, sem criar vínculos com eles. A eleição presidencial de 1960 não foi vencida pela UDN ou pela direita conservadora, mas pelo janismo. Dada essa força pessoal, Jânio acreditava que podia governar sozinho e não tinha que dividir o poder com os partidos e com o Legislativo.
Loureiro explica que o autogolpe falhou, entre outros motivos, porque o presidente não conseguiu manter sua base eleitoral mobilizada durante o governo:
— Jânio não tinha uma estrutura partidária que fosse sólida, tivesse capilaridade nacional e pudesse mobilizar os brasileiros a seu favor no momento da renúncia. Além disso, não havia na época canais alternativos de comunicação, como as redes sociais de hoje, que permitissem ao presidente se comunicar diretamente com a sua base e mantê-la ativa, radicalizada e, quando necessário, presente nas ruas.
Jânio tampouco conseguiu construir uma ponte firme com as Forças Armadas, segundo Loureiro, o que também foi decisivo para o fracasso do autogolpe. As relações com a caserna sempre foram ambíguas. Ao mesmo tempo em que prestigiou a classe, nomeando militares para presidir sindicâncias sobre supostos desvios cometidos pelo governo de Juscelino Kubitschek, ele também a humilhou publicamente, como quando acusou o general presidente da Petrobras de levar a estatal à falência — o militar chegou a ser preso após refutar o ataque. A Política Externa Independente também deixou as Forças Armadas com um pé atrás.
Consumada a renúncia, alguns aliados de Jânio chegaram a defender que ele deveria novamente se candidatar à Presidência da República para enfim derrotar as tais “forças terríveis”. O senador Argemiro de Figueiredo riu da ideia:
— Direi apenas que uma nova experiência com o senhor Jânio Quadros na chefia do governo seria o mais deplorável atestado de insanidade mental da nação brasileira.
O efeito mais traumático da renúncia seria sentido apenas três anos depois. Os militares que em 1961 não quiseram Jango na Presidência da República conseguiram derrubá-lo em 1964 e instaurar uma ditadura que duraria 21 anos.
No ano seguinte à renúncia, Jânio Quadros se candidatou ao governo de São Paulo, mas por poucos votos não se elegeu. Ele teve depois seus direitos políticos cassados pela ditadura militar e só voltou à vida política em 1986, após vencer nas urnas o adversário Fernando Henrique Cardoso e assumir a prefeitura de São Paulo.
Jânio morreu em 1992, sem nunca ter dado uma explicação convincente para a renúncia de 1961.
— Nunca se encontrou nenhuma evidência da existência de “forças terríveis” contra o governo. Ele jamais deu uma justificativa satisfatória simplesmente porque significaria descortinar o seu lado autoritário e antidemocrático. Como personalidade que ainda tinha planos eleitorais, sabia que não poderia fazer isso — explica o historiador Felipe Loureiro.
(Da Agência Senado).