Por Estevão de Rezende Martins* – “O primeiro dever do historiador é não trair a verdade, não calar a verdade, não ser suspeito de parcialidades ou rancores.” – Cícero, Deoratore II, 62 –
Historiador tornou-se, no Brasil, profissão formalmente reconhecida e regulamentada, nos termos da lei 14.038/2020, promulgada em 17 de agosto e publicada no Diário Oficial da União de 18 de agosto.
Pronto! Foi atendido o anseio de muitas décadas dos formados em História, de serem reconhecidos como categoria profissional específica.
Calhou que a publicação se deu justo na véspera do Dia do Historiador, no Brasil comemorado no dia 19 de agosto.
Um interessante concurso de circunstâncias, sobretudo quando a busca por tal reconhecimento formal por parte do Estado vinha de longe…. Os projetos começaram em 1983. Vários deles foram ficando pelo caminho, até o de 2009, apresentado no Senado pelo Sen. Paulo Paim (RS). Aprovado de início no Senado, recebeu substitutivo na Câmara dos Deputados, foi confirmado definitivamente pelo Senado em março de 2020 e enviado à sanção. Vetado integralmente pelo presidente da República em 24 de abril, ensejou votação amplamente majoritária no Congresso Nacional, que derrubou o veto em 14 de agosto.
Está assim encerrado este capítulo da novela. Quais as cenas dos próximos capítulos?
Muitos profissionais com alto nível de qualidade rejubilam-se com o que consideram ser um reconhecimento público, enfim exprimido. É bom lembrar que tal qualidade não dependeu – até o presente – de colocar-se sob a sombra invasora do Estado. Outros receiam que a qualidade de historiadores “não diplomados” passe a ser discriminada de alguma forma, agora sob a égide de norma legal. É bom não esquecer que Sérgio Buarque de Holanda ou José Honório Rodrigues eram diplomados (formalmente) em Direito.
Outros tempos, dirão muitos, mas também agora tal situação repete-se, podendo representar um curioso paradoxo: nem sempre a posse de um diploma com certa menção garante a qualidade profissional de seu portador. Em tese, ser historiador é conhecer a História em sua evolução, dominar os fundamentos teóricos do conhecimento científico, ser treinado nas práticas metódicas para produzir conhecimento confiável, saber pesquisar, apreender, analisar, criticar, entender, explicar, interpretar, descrever, narrar a complexa e multifacetada ação humana no tempo.
Por que afinal os historiadores almejavam tanto essa regulamentação? Uma boa dose de preocupação com reserva ou proteção do mercado de trabalho, alegadamente atravessado – sobretudo no ensino escolar – por formados em outras áreas que ocupavam a especialidade sem a formação própria. Preocupação legítima, já que não raro a autoridade pública não fiscaliza a observância das regras aplicáveis ao exercício do magistério especializado no ensino fundamental e médio.
Certo ciúme profissional também se dá, com respeito a autores de sucesso acerca de temas de História, sem haverem sido treinados e diplomados formalmente nessa especialidade. Pelo teor da lei, nada muda nesse ponto: escrever sobre História continua aberto a todo interessado – formado, competente, talentoso ou não.
No fundo, por consciência profissional, receio ou ciúme, a profissão enfim logrou a bênção do Estado para poder arvorar em sua túnica o label regulamentar.
É certo que no Brasil existe uma inércia cartorial renitente, pela qual profissionais de todos os tipos correm refugiar-se sob as asas do Estado, considerando que este passa a desempenhar o papel de guardião do seu respectivo campo de atuação. A lei define a profissão, descreve-a e delimita seu alcance. Terá de ser combinada com pelos menos uma outra lei: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, 1996).
Tal estratégia tem seu preço: o Estado passa a ter voz e voto no exercício da profissão, e o risco de acomodamento burocrático sob a tutela pública existe. Todas as profissões regulamentadas no Brasil por lei, desde 1932 (a primeira foi a de leiloeiro…) engendram uma maquinaria burocrática, construída sobre o famoso “registro perante a autoridade trabalhista competente” (que consta do art. 7º da nova lei).
A Associação Nacional de História (ANPUH Brasil) já se mobiliza em torno desse registro e de tudo o que virá com ele. Já aparece o receio de que se criem conselhos de todos os níveis e de que se instale a burocracia mastodôntica que é costumeira nos muitos outros casos (médicos, advogados, economistas, engenheiros, enfermeiros, contabilistas, administradores, geógrafos, assistentes sociais, aeronautas, empregados domésticos e assim por diante) – não chegam a 100. Para se ter uma ideia, a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) arrola mais de 2.400 ocupações e cerca de 7.200 designações equivalentes. Um oceano de atividades que, em princípio, retratam a vida laboral no Brasil. Imaginem se todos quiserem ter sua lei própria? Não haverá cartório que dê conta.
Será, pois, uma missão árdua administrar o exercício profissional de historiador e combiná-lo com a infinita variedade de funções que a História tem na sociedade, em particular com respeito à consciência histórica de cada um, ao ensino escolar e universitário, às instituições de pesquisa em que a pesquisa histórica (de qualidade!) é feita por biólogos, físicos, matemáticos, médicos, engenheiros, etc.
Tomara que funcione. Façamos votos que sim.
* Estevão de Rezende Martins, historiador, é professor emérito da Universidade de Brasília (Unb).