(por Célio Heitor Guimarães) – Rememorando os fatos, registrados na imprensa nossa de cada dia: 1.“Vinte e seis ministros de tribunais superiores recebem auxílio-moradia para viver em Brasília, apesar de terem imóvel próprio no Distrito Federal…”. 2. “O juiz responsável pela Lava-Jato no Rio, Marcelo Bretas [que também tem imóvel residencial próprio], entrou na Justiça e conseguiu o direito de receber a ajuda. Ele é casado com uma juíza, já favorecida pelo auxílio. Resolução do CNJ proíbe o acúmulo para casais que morem sob o mesmo teto”. 3. “Embora seja dono de apartamento em Curitiba, o juiz Sérgio Moro, responsável pela Lava Jato, recebe auxílio-moradia mensal de R$ 4.378”. 4. “O procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa do Ministério Público Federal (MPF) na Operação Lava Jato, recebe R$ 4.377,73 de auxílio-moradia. Segundo assessoria do MPF, o procurador possui imóvel próprio em Curitiba, onde mora”. 5. “Ministros do presidente Michel Temer que estão entre os políticos mais ricos do país recebem dos cofres públicos ajuda mensal para moradia e alimentação”. 6. “Quase metade dos juízes de cidade de São Paulo que ganham auxílio-moradia do erário tem casa na capital do Estado. José Antonio de Paula Santos Neto possui 60 imóveis. 7. “Ao menos 13 deputados e senadores recebem auxílio-moradia mesmo com casa própria em Brasília”. 8. “Dez integrantes da cúpula da Procuradoria-Geral e três ministros do Tribunal de Contas da União recebem auxílio-moradia mesmo tendo imóvel no DF”.
A situação se repete, com maior intensidade, nos Estados.
Os felizes beneficiados e suas associações de classe, sobretudo as de magistrados, sustentam a legalidade do mimo, visto que (a) “o auxílio-moradia tem previsão na Lei Orgânica da Magistratura”, (b) foi conferida “por resolução do CNJ (Conselho Nacional de Justiça)” e (c) foi estendida, por decisão liminar do ministro Luiz Fux “a todos os juízes federais na forma da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, inclusive nos casos de acumulação”.
Aí todo mundo repete à exaustão, que “o auxílio-moradia não apenas se trata de um direito da magistratura” [e seus assemelhados], mas “os pagamentos do benefício seguem a lei”.
Nem tanto. E representam “um direito da magistratura” em termos.
Recorramos, mais uma vez, aos fatos:
A Lei Orgânica da Magistratura (Lei Complementar nº 35, de 14.03.1979), estatui, em seu artigo 65, inciso II, com a redação que lhe deu a Lei nº 54, de 22.12.1986, que “além dos vencimentos, poderão ser outorgadas aos magistrados, nos termos da lei, as seguintes vantagens: (…) II – ajuda de custo, para moradia, nas localidades em que não houver residência oficial à disposição do Magistrado”.
Parece certo que se trata de uma vantagem provisória. Além do que, a lei não estabelece valores nem isenta o contemplado da prestação de contas.
O Conselho Nacional de Justiça, então presidido pelo lamentável ministro Ricardo Lewandowski, houve por bem estender o benefício a toda a magistratura nacional, dar-lhe caráter indenizatório e excluir o valor do teto remuneratório dos magistrados.
Submetido o tema ao STF, o ministro Luiz Fux, em decisão liminar, confirmou o direito do auxílio a todos os juízes federais em atividade. E deduziu que “os magistrados federais fazem jus ao auxílio, uma vez que se trata de verba de caráter indenizatório – compatível com o regime do subsídio -, previsto pela Loman e já paga a diversos profissionais, como procuradores federais, ministros de tribunais superiores e a magistrados de 18 estados”.
Em momento algum, porém, a Loman conferiu “caráter indenizatório” à verba em questão. Limitou-se a conceder “ajuda de custo, para moradia, nas localidades em que não houver residência oficial à disposição do Magistrado”.
E, por óbvio, que não disponha o magistrado de residência própria!
A extensão do benefício, o “caráter indenizatório” e a exclusão do valor no teto remuneratório da magistratura foram benesses outorgadas pelo CNJ.
Segundo prevê a Constituição Federal (art. 103 B, § 4º), a principal função do CNJ é controlar a atuação administrativa e financeira do Judiciário, assegurando que os magistrados cumpram com seus deveres.
Tendo notícia de irregularidade cometida por magistrado, o CNJ pode instaurar um processo administrativo para apurar a denúncia, podendo, até mesmo, decretar a aposentadoria compulsória do magistrado.
Além da função disciplinar, o CNJ possui uma função estratégica: ele ajuda no planejamento do poder Judiciário, fazendo o levantamento estatístico do movimento judiciário de todo o país, indicando a produção dos magistrados e também os maiores litigantes que movimentam os órgãos judiciais.
O CNJ não tem função legislativa e, ainda que possa controlar a atuação financeira do Judiciário, não dispõe da prerrogativa de conferir ou disciplinar benefícios financeiros à magistratura ou ao Ministério Público.
Assim, ao dizer-se amparado pela lei para receber e manter o auxílio-moradia, magistrados, membros do Ministério Público, deputados, senadores, ministros do Tribunal de Contas, procuradores e seus correspondentes estaduais, pretendem extrair da lei aquilo que ela não tem. E o pior: em benefício próprio.
P.S. – Mais um exemplo: em artigo na edição de ontem da Folha de S.Paulo, três eminentes juízes reafirmam a legalidade do auxílio-moradia. E em apenas um parágrafo já cometem dois erros: “… a ajuda de custo para moradia da magistratura está prevista na Lei de Organização Judiciária (Loman), no artigo 65, inciso 2º, que assegura o seu pagamento sempre que não houver residência oficial, independentemente de o magistrado possuir ou não imóvel próprio” (destaque meu). Primeiro erro: Loman é Lei Orgânica da Magistratura Nacional e não Lei de Organização Judiciária, excelências; segundo: em que momento da Loman é assegurado o pagamento “independentemente de o magistrado possuir ou não imóvel próprio”? No artigo 65, inciso II (e não”2º”), com certeza não é.
(Texto publicado originalmente no blog www.jornale.com.br)