“É claro que a política não é o ofício da bagatela, a pragmática da ninharia. Quem cuida de coisas pequenas, acaba anão.” – Ulysses Guimarães.
“Não é assustador saber que a sabedoria humana é limitada, mas a tolice humana, não?” – Konrad Adenauer.
Por Estevão de Rezende Martins* – A elaboração da Constituição Federal de 1988 incluiu longas jornadas de discussões temáticas. Sobre tudo e qualquer coisa havia uma pletora de entendidos que disputavam a preeminência do convencimento e da decisão. Um dos assuntos que muito suscitou debate foi a valorização da “política nas bases”, com a reformatação do município e de sua função no abaladiço edifício do país, em obras. Frente municipalista, associações de prefeitos e vereadores e outras entidades interessadas em fazer valer suas propostas viram na Constituinte uma ocasião de ouro para influenciar as decisões.
De quebra o municipalismo também foi utilizado nos intermináveis debates sobre o sistema tributário. A crônica falta de dinheiro no país (não mudou muito até hoje) fazia, faz, fará da questão tributária um ponto vulnerável de qualquer reforma. No fundo, sempre se pergunta: quem paga a conta? É evidente que o contribuinte já se encontra exaurido.
Os lobistas dos municipalistas tiveram sucesso em boa parte. O município ganhou o estatuto de ente federativo sui generis somente em 1988. A criação de municípios foi liberalizada a tal ponto que, em 2000, o número de municípios no Brasil aumentara 35% com respeito a 1988: passou de 4.121 a 5.559.
Emendas constitucionais e diversas disposições legais puseram o pé no freio quanto aos requisitos para sua criação assim como relativamente à remuneração dos edis e prefeitos (despesa de pessoal tem o teto de 60% da receita do município). A frenagem deu certo: em 2020, há 5.570 municípios no país. Campeão de municípios: Minas Gerais (853). Não houve, contudo, marcha a ré. Nesses municípios há 56.398 mandatos de vereador em disputa. E mais de 500.000 candidatos inscritos! Não se sabe quantos “estão candidatos” só para constar ou para cumprir requisitos formais da lei.
Poder-se-ia mesmo pensar que “ser político” afinal não seria assim tão execrável como dizem por aí.
Há dois problemas recorrentes, que exigem ainda reformas: moral quanto à função pública e política, quanto à concepção e funcionamento do município.
Um elemento da moralidade tem a ver com o uso dos (parcos) recursos públicos para pagar regiamente prefeitos e vereadores. O Brasil é um dos raros países do mundo em que, no nível municipal, os detentores de mandato eletivo são verdadeiros “funcionários” pagos como se estivessem em dedicação exclusiva.
O elemento político reside na necessidade de adotar uma concepção gerencial para a gestão do município [(obviamente com grau diverso de complexidade se se compara Serra da Saudade (MG – 786 habitantes) e São Paulo (SP – 12,2 milhões de habitantes)].
Na maior parte dos países mundo afora, exceto nas megalópoles (e mesmo assim com certos limites), vereadores – mesmo enquanto agentes políticos eleitos e investidos de mandato popular – atuam de modo benévolo, ad honorem. Continuam a exercer suas profissões respectivas e recebem somente um jeton mensal (por exemplo: na Alemanha, com 10.779 municípios, no máximo € 300/ mês [cerca de 310 dólares] por 60h de atuação; na Argentina, com 2.278 municípios, o valor oscila entre 100.000 e 160.000 pesos/mês, equivalentes a cerca de US$ 1.096 a US$ 1.754; na França, com 34.968 municípios, € 233,36/ mês [cerca de US$ 257] para participar das sessões). Sem penduricalhos.
No Brasil, dados de 2017 registram salários de R$ 5.261,39 a R$ 21.081,21, fora penduricalhos (que, por vezes, direta ou indiretamente, mais do que dobram o valor embolsado). Em dólar de 2017, algo em torno de US$ 1.660,00 a US$ 6.650,00.
Não seria o caso de se perguntar, já que há 61.968 mandatos em disputa, o que tanto atrai esse mundaréu de gente querendo ser vereador e prefeito? Plataforma para servir de degrau para os candidatos de 2022? Trampolim para “dar-se bem”? Entusiasmo pela causa? Amor, abnegação e dedicação à coisa pública?
Enfim – que nós eleitores pensemos bem em quem votaremos, e saibamos que nem sempre a escolha do mal menor é o bem maior. Depois, são quatro (ou mais) anos com a ‘tchurma’ instalada – e, cuidado!, grudam.
* Estevão de Rezende Martins, historiador, é professor emérito da Universidade de Brasília (UnB).